"Apagaram tudo... pintaram tudo de cinza..."
A estrofe da música “Gentileza”, de Marisa Monte, revela sua tristeza ao se deparar com os murais com as palavras do profeta Gentileza apagadas. Ele escrevia em pilastras do Rio de Janeiro mensagens que enalteciam o amor, a bondade e, acima de tudo, a gentileza. É dele a tão repetida frase “Gentileza gera gentileza”. A famosa frase vem sendo utilizada em campanhas de trânsito, em camisetas e até mesmo em cangas de praia. Ao que parece, está em voga ser gentil e cortês. Porém, o que significa de fato ser gentil? Resumidamente, é fazer uma boa ação ao próximo, ou até mesmo ao meio ambiente. É como dizer em ações que nos importamos com algo.
A origem sânscrita para denotar gentileza, segundo o professor de Yoga Pedro Kupfer, é prasada. Para Kupfer, a palavra tem um sentido maior, divino até: “Prasada, por um lado, designa qualidades como gentileza, serenidade e bom humor, enquanto que, por outro, significa calma, pureza e clareza. Se este termo está ligado sempre às manifestações mais harmoniosas da divindade, é porque a gentileza, a graça e as demais qualidades são de fato divinas”.
A gentileza pode aparecer sob diversas formas. Ser gentil significa não somente sorrir e cumprimentar o próximo, ou dizer palavras simples como por favor, obrigado e desculpe. Significa também ser solidário, dar apoio e suporte a alguém que esteja em dificuldade, fazer trabalhos de voluntariado. E, ainda, segundo a ONG Australian Kindness Movement (Movimento Australiano de Gentileza), ser gentil é não fazer algumas coisas, como, por exemplo, evitar fofocas, não apontar o dedo de culpa para os outros e não fazer juízos negativos a respeito ao próximo. Além de fazer bem aos outros, ser gentil faz bem a quem pratica o ato de gentileza, promovendo a saúde e o bem-estar.
Allan Luks, ex-diretor do Instituto para Promoção à Saúde, em Nova York, EUA, fez um estudo sobre o tema e publicou os resultados em seu livro The Healing Power of Doing Good: The Health and Spiritual Benefits of Helping Others (O poder de cura de fazer o bem: a saúde e os benefícios espirituais de ajudar os outros). Luks estudou mais de 3 mil voluntários, de todas as idades, em mais de 20 organizações de todo o país. Ele verificou uma clara relação de causa e efeito entre um ato de gentileza e o bem-estar. Luks concluiu em sua pesquisa que ajudar ao próximo contribui para a manutenção da boa saúde e pode diminuir os efeitos das doenças e distúrbios graves e menores, sejam físicos ou psicológicos.
Atos de gentileza diminuem a depressão, promovendo o contato social e diminuindo o sentimento de isolamento que pode levar ao estresse, sobrepeso e úlceras. A redução do estresse pode, inclusive, diminuir ataques de asma. Dores físicas também podem diminuir em decorrência de fazer o bem. Até o nosso sistema imunológico se beneficia do bem ao próximo, pois os sentimentos gerados por essa conexão – amizade, amor, sentimentos positivos – aumentam a nossa imunidade. O estudo de Luks também aponta que fazer o bem aumenta a nossa sensação de valia, trazendo felicidade e otimismo, afastando o sentimento de desamparo. E ser gentil promove ainda: maior disposição, tranquilidade, ajuda no controle do peso, melhora na insônia, aumento da temperatura corporal, melhora no sistema cardiovascular, redução do ácido estomacal, aceleração na recuperação de cirurgias e redução das atividades cancerígenas, entre outros. Não à toa, Luks decidiu estudar “este fenômeno intrigante que parecia ter efeitos quase mágicos”.
Paul Pearsall, Ph.D. em Psicologia no Havaí, relatou em seu livro Receita do Prazer (ed. Cultrix) que pesquisas recentes mostram que atitudes abnegadas são uma das coisas mais saudáveis que podemos fazer pelo próximo e por nós mesmos. Ele não exagera quando diz que a gentileza tem “imensos benefícios sobre a imunidade e a cura”.
O médico texano Larry Dossey, famoso por estudar o papel da mente na saúde, defende que a gentileza e o altruísmo agem como uma droga milagrosa, trazendo efeitos benéficos tanto para aquele que pratica o ato de bondade como para aquele que o recebe. Segundo ele, o bem estimula respostas saudáveis nos indivíduos, o que corrobora os resultados dos estudos realizados por Luks.
FAZER O BEM NÃO IMPORTA A QUEM
FAZER O BEM NÃO IMPORTA A QUEM
Leda Lasserre, orientadora educacional, tinha febre reumática e cresceu com reumatismo infeccioso. Começou a cuidar de crianças doentes, fazendo roupinhas para elas e separando alimentos. Ela diz: “Envolver-me com o sofrimento dos outros ajudan- do crianças que não tinham dores nas pernas, mas tinham fome e outras privações, me fez suportar as minhas dores e me deu uma alegria contagiante”.
Segundo o Australian Kindness Movement, a gentileza está sendo utilizada para manter a pressão arterial sob controle, banir dores de cabeça, aliviar dores nas costas e reduzir a dor da artrite e lúpus.
Elisabeth Campos, tradutora, percebeu o benefício da gentileza quando começou a visitar pacientes em hospitais. Ela sofria de uma alergia sem cura, que fazia seus dedos se abrirem em grandes feridas. Passou também a realizar trabalhos voluntários em uma entidade filantrópica. Em breve tudo desapareceu e ela relata que nunca mais voltou a ficar doente.
Mas, afinal, qual a razão de tantos efeitos positivos em decorrência da gentileza? Por que ajudar ao próximo acaba nos ajudando mais que tudo? Segundo os especialistas, em parte porque, ao ajudar ao próximo, deixamos de focar nossa atenção sobre os nossos problemas, o que por tabela reduz o nosso estresse. O dr. Herbert Benson, cardiologista da Universidade de Harvard (EUA), diz que quando realizamos um ato de gentileza, nosso corpo nos recompensa criando uma “sensação agradável”, o que aumenta a autoestima e o bem-estar. Esse efeito é conhecido como o “barato” de fazer o bem, liberando endorfinas no corpo – substâncias naturais semelhantes à morfina que criam uma sensação de felicidade dentro de nós. Elas também ajudam a reduzir qualquer mensagem de dor enviada ao cérebro.
Apesar de tantos benefícios sobre o ato de ser gentil e fazer o bem, parece que atos delicados ainda não são comuns em nossa sociedade. Em seu livro, Pearsall diz que isso se reflete nas doenças e na constante sensação de infelicidade do ser humano. Segundo ele, essa infelicidade é oriunda da nossa incapacidade de controlar o destino, assim como de nossa incapacidade de nos dar conta de que existe uma relação entre nossas doenças físicas e sociais. Para Pearsall, a solução seria nossa reconexão com nós mesmos, com a terra e com aqueles ao nosso redor.
Se podemos até mesmo combater as doenças e a eterna sensação de infelicidade ao promover a gentileza, é de se supor que atos gentis possam nos conduzir a um caminho mais rápido em direção à evolução espiritual, ao alcance da iluminação. E, segundo o Yoga, isso realmente é possível. Kupfer explica que a segunda maneira de dizer gentileza é anugraha. “O Bhagavata Purana usa repetidas vezes o termo anugraha como expressão da compaixão de Ishvara (Deus) por todas as criaturas. Adi Shankaracharya (filósofo indiano que estabeleceu a doutrina do Vedanta Advaita), ao longo de toda a sua obra, igualmente menciona anugraha como a graça que possibilita a libertação, a saída do samsara, o ciclo de nascimentos e mortes. Seja qual for a palavra que usarmos em sânscrito para dizer gentileza, essa gentileza tem duas dimensões: a divina em relação ao humano, e a da convivência entre os humanos.”
Se podemos até mesmo combater as doenças e a eterna sensação de infelicidade ao promover a gentileza, é de se supor que atos gentis possam nos conduzir a um caminho mais rápido em direção à evolução espiritual, ao alcance da iluminação. E, segundo o Yoga, isso realmente é possível. Kupfer explica que a segunda maneira de dizer gentileza é anugraha. “O Bhagavata Purana usa repetidas vezes o termo anugraha como expressão da compaixão de Ishvara (Deus) por todas as criaturas. Adi Shankaracharya (filósofo indiano que estabeleceu a doutrina do Vedanta Advaita), ao longo de toda a sua obra, igualmente menciona anugraha como a graça que possibilita a libertação, a saída do samsara, o ciclo de nascimentos e mortes. Seja qual for a palavra que usarmos em sânscrito para dizer gentileza, essa gentileza tem duas dimensões: a divina em relação ao humano, e a da convivência entre os humanos.”
Com a intenção de encorajar ações em prol de uma sociedade mais gentil e justa foi criado o World Kindness Movement, que surgiu a partir de uma pequena conferência realizada em Tóquio, em 1996. A organização, espalhada por diversos países do mundo, tem como representante oficial no Brasil a Associação Brasileira de Qualidade de Vida (ABVQ). A representante do WKM no Brasil, Sâmia Simurro, pontua que o bem-estar não é obtido somente por meio de atitudes saudáveis, como uma boa alimentação, boas horas de sono etc. Para ela, o bem-estar também advém de uma boa relação entre os seres humanos, permeada por gestos amáveis e gentis.
Como todo ato de bondade, precisamos estar alertas para não fazer o bem esperando colher a recompensa. Quando não esperamos por resultado algum, tudo o que advém de bom de nossos atos soa como bônus. Assim não geramos expectativas e frustrações. É bom ter em mente que a gentileza brota naturalmente de estados emocional e espiritual mais avançados. Kupfer diz: “Gentileza é aquilo que naturalmente surge quando a pessoa amadurece emocionalmente ou se aproxima desse estado de consciência que é moksha, a liberdade. Como todas as demais virtudes, a gentileza é um efeito colateral da maturidade emocional”.
Por fim, vale lembrar que a gentileza tem efeito cascata (gentileza gera gentileza!), pois faz bem a quem a pratica e também a quem a observa. Luks diz: “Ajudar ao próximo tem o poder de afetar não só a saúde do indivíduo, mas a saúde de toda a nossa sociedade, tão permeada de tensão”. Kupfer acrescenta sobre o valor de fazer o bem: “Creio que a nossa sociedade poderia ser mais feliz se descobrisse o valor da gentileza. Para isso, todos nós devemos fazer a nossa parte no sentido de tornar o mundo um lugar mais agradável. Assim, podemos pensar em nos colocar na pele dos demais e trabalhar pequenas atitudes, como ceder a passagem no trânsito, não querer sempre chegar em primeiro lugar, deixar os outros vencerem de vez em quando e não sermos tão duros conosco”.
Quem foi o profeta Gentileza?
José Datrino, nascido em 1917, ficou famoso a partir da década de 1980 por andar pelas ruas do Rio de Janeiro com uma barba longa, trajando uma túnica branca e escrevendo em pilastras, na zona portuária, frases que estimulavam o amor entre as pessoas. Passou a se apresentar como “profeta Gentileza”, e sua frase mais famosa, “Gentileza gera gentileza” está até hoje no imaginário popular. Recentemente Glória Perez o homenageou em sua última novela, fazendo-o personagem, interpretado por Paulo José. Após uma infância difícil, Gentileza passou a trabalhar com transporte de cargas, até que um dia largou tudo motivado pelas “vozes que escutava” e foi se dedicar à sua missão: pregar o amor ao próximo. Tal fato gerou várias internações psiquiátricas, até chegarem à conclusão de que Gentileza não sofria de mal algum. Morreu em 1996, deixando mais de 50 pilastras pintadas com suas mensagens – hoje, patrimônio artístico-cultural do Rio. Algum tempo atrás essas pilastras foram recobertas por tinta e cal, encobrindo o trabalho de Gentileza. Porém, o projeto “Rio com Gentileza” trabalha em prol de recuperar essas obras. A segunda restauração está sendo comandada por uma equipe da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o projeto foi lançado no último dia 6 de maio no Rio de Janeiro. Para os que chamavam o profeta Gentileza de louco, ele sorria e retrucava: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”.
José Datrino, nascido em 1917, ficou famoso a partir da década de 1980 por andar pelas ruas do Rio de Janeiro com uma barba longa, trajando uma túnica branca e escrevendo em pilastras, na zona portuária, frases que estimulavam o amor entre as pessoas. Passou a se apresentar como “profeta Gentileza”, e sua frase mais famosa, “Gentileza gera gentileza” está até hoje no imaginário popular. Recentemente Glória Perez o homenageou em sua última novela, fazendo-o personagem, interpretado por Paulo José. Após uma infância difícil, Gentileza passou a trabalhar com transporte de cargas, até que um dia largou tudo motivado pelas “vozes que escutava” e foi se dedicar à sua missão: pregar o amor ao próximo. Tal fato gerou várias internações psiquiátricas, até chegarem à conclusão de que Gentileza não sofria de mal algum. Morreu em 1996, deixando mais de 50 pilastras pintadas com suas mensagens – hoje, patrimônio artístico-cultural do Rio. Algum tempo atrás essas pilastras foram recobertas por tinta e cal, encobrindo o trabalho de Gentileza. Porém, o projeto “Rio com Gentileza” trabalha em prol de recuperar essas obras. A segunda restauração está sendo comandada por uma equipe da Universidade Federal Fluminense (UFF) e o projeto foi lançado no último dia 6 de maio no Rio de Janeiro. Para os que chamavam o profeta Gentileza de louco, ele sorria e retrucava: “Sou maluco para te amar e louco para te salvar”.
Artigo escrito por Cacau Peres para a Revista Yoga Journal em 2010.
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